O FOTÓGRAFO PROFISSIONAL
Galeria - Cacau Amado
Agricultores, fazendeiros, manipuladores e beneficiadores da matéria prima cacau são alvos diretos das lentes desse projeto
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Cacau Amado
Publicado em 1943, o romance Terras do Sem Fim de Jorge Amado conta um pedaço da expansão e produção cacaueira em Ilhéus no Sul da Bahia, baseando sua narrativa na vida cotidiana dos personagens.
Os relatos de Amado tratam de uma época violenta onde a lei era ditada pelos poderosos coronéis, a vida valia muito pouco e a consciência ambiental era inexistente.
Do apogeu econômico ao declínio da produção, as plantações de cacau foram dizimadas por uma praga natural, a vassoura de bruxa, que também enfraqueceu e pôs fim aos coronéis, abrindo espaço para outras atividades financeiras mais lucrativas.
A Vassoura de Bruxa também varreu o Brasil do mapa de exportação da fruta. Já tendo sido o maior produtor de cacau do mundo, o país agora importa grande parte do que consome.
No atual cenário, surgem produtores cujo objetivo é o de resgatar a qualidade do cacau brasileiro através de técnicas modernas de cultivo e manejo, sempre preocupados com a sustentabilidade das lavouras.
Criador e obra emprestam seus nomes para esse projeto. Nasce assim o Cacau Amado com um grande objetivo: criar um relato fotográfico da cultura cacaueira na região de Ilhéus, confrontando a atual atividade com aquela descrita pelo romance Terras do Sem Fim.
Agricultores, fazendeiros, manipuladores e beneficiadores da matéria prima cacau são alvos diretos das lentes desse projeto que tem por natureza características documentais e contemplativas. Localizar tais pessoas, acompanhando-as em sua lida diária durante o processo de transformação do cacau, da semente ao chocolate, através da linguagem fotográfica é o intuito do Cacau Amado.
O Navio e o Mar
De tão grande parece mar, mas é a foz do Rio Cachoeira. Por essas águas, milhares de brasileiros vindos de todas as regiões, chegaram à São Jorge dos Ilhéus atrás da promessa de riqueza saída da boca de algum estranho, mareado pelo aguardente barato vendido nos botecos de beira de porto.
O apito dos vapores anunciavam a chegada de mais uma leva de trabalhadores, geralmente amontoados na terceira classe e tratados como carga, num análogo à escravidão. O som estridente doía na boca do estômago daqueles que entendiam que quanto mais próximos estivessem da riqueza, mais longe estariam de consegui-la para si.
De quanta coragem precisa um homem que deixa tudo para trás: mulher, filhos, irmãos e pais; sonhando em um dia encontrar a cabaça dourada de cacau que o deixará rico? Seria a esperança do sonhador ou desespero de quem já não consegue mais sonhar? Seja lá qual fosse a resposta, era preciso acreditar que o porvir seria melhor do que ficou abandonado em outras terras.
“Nas noites de lua, quando as estrelas enchiam o céu, tantas e tão belas que ofuscavam a vista, os pés dentro da água do rio, ele planejava a vinda para estas terras de Ilhéus. Homens escreviam, homens que haviam ido antes, e contavam que o dinheiro era fácil, que era fácil também conseguir um pedaço grande de terra e plantá-la com uma árvore que se chamava cacaueiro e dava frutos cor de ouro que valiam mais que o próprio ouro. A terra estava na frente dos que chegavam e não era ainda de ninguém. Seria de todo aquele que tivesse coragem de entrar na mata adentro, fazer queimadas, plantar cacau, milho e mandioca, comer alguns anos de farinha e caça, até que o cacau começasse a frutificar.” (Amado, Jorge. Terras do Sem Fim. P 29. 1968. Livraria Martins Editora)
No porto, pela primeira vez os pés descalços do migrante pisaram nas terras de Ilhéus. Segurando de encontro ao peito a pequena sacola de pano onde levava todos os seus pertences, parou no meio da rua barrenta e ficou, debaixo de chuva, a observar o ir e vir da gente do lugar. Naquele momento, foi tomado por pensamentos que preferia não ter tido: “se essas são as terras da prosperidade, como pode aquele bêbado, embriagado por cachaça barata, não ter enricado?”
Certo de que com ele seria diferente, decide mais uma vez seguir em frente. Dalí, sairia rico ou morto, mas não seria mais um bêbado derrotado à espalhar as histórias de Ilhéus.
“O apito do navio era como um lamento e cortou o crepúsculo que cobria a cidade.” (Amado, Jorge. Terras do Sem Fim. P 21. 1968. Livraria Martins Editora)
O povoamento e exploração da região não se deram de forma rápida, muitos foram os donos que rechaçaram as terras que lhes foram oferecidas pelos portugueses e somente a partir de 1860 houve um crescimento expressivo da lavoura cacaueira. Ilhéus levaria ainda vinte anos até ser elevada a categoria de cidade, o que só ocorreu em 28 de junho de 1881.
A partir de 1890, a população do eixo Ilhéus / Itabuna explodiu em número. Estima-se que a quantidade de habitantes passou de 7.000 para mais de 105.000. As pessoas chegavam à pé, de barco e no lombo de animais.
Imagine-se no século XIX, chegando a essa região em uma embarcação precária onde os homens e mulheres contavam histórias de dinheiro, poder e morte e entrando na última curva antes do seu destino: Ilhéus.
Pela desembocadura do Cachoeira, a navegação seguia rio a dentro, as margens estreitavam-se a medida em que o navio seguia, aumentando a ansiedade daqueles que vinham de terras distantes para enfrentar o desconhecido.
A Mata
Quando nas terras do cacau, a mata era o próximo grande mistério apresentado aos novatos. Tratada como uma entidade, atribuíam-lhe poderes sobrenaturais e perante ela, até os mais experientes tremiam. Resignados somente os homens de visão que, ao encararem a mata ainda virgem, nunca pisada por pés humanos, vislumbravam ali suas futuras roças.
Nem onças, nem cobras, tempestades ou até mesmo o pio agourento de uma coruja na escuridão de uma noite sem lua eram páreos para o medo da febre maldita que nos delírios, materializava o lobisomem.
Aos poucos a floresta nativa cedia aos facões, foices e fogo, dando lugar às mudas de cacau. Muitos morriam no processo de expansão contínua, mas a mão de obra era facilmente reposta pelos navios que diariamente aportavam. Dali a três ou quatro anos, os primeiros frutos daquela terra seriam colhidos.
“A mata dormia o seu sono jamais interrompido. Sôbre ela passavam os dias e as noites, brilhava o sol do verão, caíam as chuvas do inverno. Os troncos eram centenários, um eterno verde se sucedia pelo monte afora, invadindo a planície, se perdendo no infinito. Era como um mar nunca explorado, cerrado no seu mistério. A mata era como uma virgem cuja carne nunca tivesse sentido a chama do desejo. E como uma virgem era linda, radiosa e môça, apesar das árvores centenárias. Misteriosa como a carne de mulher ainda não possuída. E agora era desejada também.” (Amado, Jorge. Terras do Sem Fim. P 46. 1968. Livraria Martins Editora)
O homem subjugava a mata, mas não a natureza. A região cacaueira do Sul da Bahia sempre foi e ainda é uma região muito úmida, banhada por inúmeros rios que serpenteiam por toda o território com inúmeras várzeas que dificultam a locomoção, mas criam o ambiente ideal para o cultivo do cacau.
Ser pioneiro não era tarefa fácil por aquelas bandas. Quando a fama da lavoura ganhou notoriedade em distantes paragens, as classes do poder já estavam definidas: os trabalhadores rurais estavam na base da pirâmide, os Coronéis, no topo. Entre esses dois extremos tão distintos, espremiam-se jagunços, advogados, políticos, funcionários públicos, engenheiros, médicos, amantes e esposas. Por vezes, um assumia o papel do outro, mas basicamente era o que se tinha.
O Cacau
“Eu vou contar uma história, uma história de espantar”
Com essa frase, Jorge Amado inicia o livro Terras do Sem Fim e vim aqui reviver um pouco da fantasia descrita pelo romance de Jorge.
Aqui em Ilhéus, o cacau prosperou e deu força as figuras poderosas do passado, os Coronéis do Cacau. Hoje, a fruta me inspira a reviver um pedaço de nossa história através desse projeto fotográfico, o Cacau Amado. Vou atrás da nova história do cacau e do que ele representa atualmente para a região.
Os primeiros relatos de que se tem registro sobre a região de São Jorge dos Ilheos, datam do ano 1000 quando as tribos indígenas Tapuias teriam sido expulsas para o interior do continente devido a chegada dos tupis procedentes da Amazônia.
A parte da história que nos interessa, começa a partir da segunda metade do século XIX. Nessa época teriam sido plantadas as primeiras sementes de cacau, planta nativa da região amazônica, trazidas do Pará pelo francês Louis Warneaux e plantadas na fazenda Cubículo às margens do rio Pardo, hoje município de Canavieiras.
Mais adiante, em 10 de agosto de 1912 nasce Jorge amado em Itabuna que durante sua juventude, presenciou a existência de muitos coronéis.
Em Terras do Sem Fim, Jorge dá vida a dois personagens principais Sinhô Badaró e Basílio de Oliveira. O primeiro, de fato existiu, mas segundo relatos era bem diferente do que conta o romance. Já Basílio de Oliveira, seria a personificação de diversas fontes inspiradoras e, segundo o próprio escritor, o Coronel Misael Tavares, o Rei do Cacau, seria uma delas.
Misael começa a se destacar dos demais no final do século XIX como um próspero produtor de cacau e seu legado existe até hoje através do Palacete Misael Tavares no centro histórico de Ilhéus e o atual Ilhéus Hotel.
“Os homens vão recuando. Levaram horas, dias e noites, para chegar até ali. Atravessaram rios, picadas quase intransitáveis, fizeram caminhos, calçaram atoleiros, um foi mordido de cobra e ficou enterrado ao lado da estrada recém-aberta. Uma cruz tôsca, o barro mais alto, era tudo que lembrava o cearense que havia caído. Não puseram o seu nome, não havia com que escrever. Naquele caminho da terra do cacau aquela foi a primeira cruz das muitas que depois iriam ladear as estradas, lembrando homens caídos na conquista da terra. Outro se arrastou com febre, mordido por aquela febre que matava até macacos. Se arrastando chegou e agora êle também recua, a febre fá-lo ver visões alucinantes. Grita para os demais:
É o lobisomem…”
(Amado, Jorge. Terras do Sem Fim. P 46. 1968. Livraria Martins Editora)
A escuridão, os bichos da mata e principalmente a imaginação causam peças horrendas aqueles que se aventuram pelos domínios da brenha. Um arrepio amedrontador percorre a nuca do homem mais forte e corajoso da tropa que pelo canto do olho avista o vulto que espreita por entre as folhas. Uma oração deve afastar o mal, mas ele fa faz em silêncio pois não quer dúvidas sobre sua bravura.
A noite curva a realidade conhecida. Nela, a mata, a fazenda, o cacaueiro e tudo mais por essas terras, ganham outro significado e outra dimensão.
A próxima sequência, traz quatro fotos que fiz à noite, na escuridão total, próximo ou dentro dos domínios da Mata. Os sons e sensações descritas em Terras do Sem Fim transbordavam em meus sentidos. O coração batia mais forte a cada passo. Interrompi a caminhada e apaguei a lanterna. Por alguns minutos fiquei ali imóvel, tentando me conectar os desbravadores do passado.
Gestação de Cidades
Quem chega hoje em Ilhéus sem conhecer sua história, pode até duvidar que essa foi uma das cidades mais ricas do país. Mais difícil é acreditar que ainda se produz cacau de excelente qualidade na região.
O viajante esbarra em pouquíssimas referências a cultura cacaueira e somente a encontra quando se desloca para o interior. Em poucos quilômetros, através da Ilhéus – Uruçuca (BA-262), o panorama muda consideravelmente e os primeiros pés de cacau são avistados a beira da estrada. As folhas grossas de cores vivas, o caule retorcido dão a dica: ali é terra de cacau.
“Em meio aos “caxixes”, às lutas políticas às intrigas e às festas da Igreja ou da Maçonaria, vivia Tabocas, que antes não tivera nome e agora pensava em se chamar Itabuna. Muitas vêzes o sangue de homens caídos nos barulhos se misturava à lama das ruas. Os burros revolviam tudo no seu passo lento. Por vêzes, quando o dr. Jessé chegava com sua mala de ferros, custava encontrar a ferida, porque a lama cobria o corpo do homem. Mas, ainda assim, a fama de Tabocas corria mundo, se falava dêsse povoado até no sertão, e certo jornal da Bahia já o chamara de “centro de civilização e de progresso.” (Amado, Jorge. Terras do Sem Fim. P 144. 1968. Livraria Martins Editora)
Aos poucos o universo dessa fruta maravilhosa vai se mostrando aos que a conhecem pela primeira vez. Ver de perto as plantações é como encontrar um personagem famoso, daqueles admirados à distância, mas que de fato existem.
Elenco e cenários são descobertos aos poucos, mas infelizmente a decadência está por toda parte. As imponentes casas dos temidos Coronéis de outros tempos, agora são ruínas ou estão muito deterioradas. Salvam-se uma ou outra. A noite, perto da hora de dormir, é possível ouvir ao coaxar dos sapos que vivem nas áreas encharcadas, tal qual descrito em Terras do Sem Fim.
Nadando contra a maré, estão os atuais sonhadores do cacau, que buscam capacitação para aplicar técnicas modernas ao manejo da lavoura e dela tirar seu sustento, trazendo um novo brilho para o Sul da Bahia.
A Luta
À noite, a morte espreita atrás da próxima jaqueira, da próxima, da próxima… O viajante sabe que sua morte está encomendada, mas segue pela estrada, tentando avistar por entre os cacaueiros um jagunço descuidado que não soube se esconder. A sorte está lançada, mas a escuridão atrapalha ambos: matador e vítima.
Nas terras de Ilhéus, as disputas não eram intermediadas por tribunais; eram resolvidas à bala. Tinha mais direitos quem tivesse melhor pontaria. Tinha mais testemunhas quem tivesse mais jagunços. Tinha mais embasamentos legais quem tivesse mais dinheiro.
Do que são feitos os nervos de um homem que mesmo “encomendado” e, ciente disso, se desloca pelo breu da noite escoltado por uma comitiva de dois ou três?
“Havia cruzes sem nomes pela estrada. Homens que haviam caído, de bala ou de febre, sob o punhal também, nas noites de crime ou de doença. Mas os cacaueiros nasciam e frutificavam, seu Maximiliano dissera que, no dia em que tôdas as matas estivessem plantadas, êles imporiam seus preços nos mercados norte-americanos. Teriam mais cacau que os inglêses, em Nova Yorque se saberia o nome de Sinhô Badaró, dono das fazendas de cacau de São Jorge dos Ihéus.” (Amado, Jorge. Terras do Sem Fim. P 216. 1968. Livraria Martins Editora)
A luta nos dias de hoje, é a de sobreviver do cacau.
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